02 julho 2021
02 jul 2021

Nossa vida espiritual (III)Abordagem do mistério do Cristo

Nossa vida espiritual  (III)
Apresentação em série do "Guia de Leitura" das Constituições, escrito por P. Albert Bourgeois.
por  P. Albert Bourgeois, scj
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“…Abordagem do mistério do Cristo…
na Igreja fomos iniciados na Boa Nova
de Jesus Cristo: (9)… descobrir, cada vez mais,
a Pessoa de Cristo e o mistério de seu Coração” (17)

1. Nossa experiência de fé

143  Como no caso da “graça e da missão” do Padre Dehon, somos convidados a reconhecer os traços característicos de uma vida espiritual SCJ e a discernir suas articulações ou linhas mestras a partir de nossa “experiência de fé”. Neste sentido, o sub-título do n. 9 “A nossa experiência de fé” introduz e, de certa maneira, engloba todo o segundo capítulo (nn. 9-85). A análise global foi apresentada em I, 3.1. e, especialmente, para os nn. 1-39 (vida religiosa SCJ), em I, 3.2. O conteúdo e, pode-se dizer também, a dinâmica de nossa fidelidade (fidelitas) nascem de nossa experiência de fé (fides).

144  Como já foi observado, a análise literária pode ajudar a leitura e a reflexão; mas, como toda análise, no fim, trai a realidade e o próprio texto.

145  Trai a realidade, porque parece estabelecer uma distinção clara e lógica, ao mesmo tempo cronológica ou essencial, entre, de um lado, a experiência cristã em geral (“com todos os nossos irmãos cristãos” 9 e 13) e a experiência dehoniana (n. 16 e seguintes) – como se esta já não estivesse naquela, em germe, mas fosse uma espécie de excrescência da primeira – e, de outro lado, entre “vida espiritual” (16-25) e “missão apostólica” (26-39), estabelecendo uma dicotomia cujos sinais se descobrem na fórmula do n. 16: “Chamados a servira Igreja… a nossa resposta supõe uma vida espiritual”.

146  A análise trai também o próprio texto. Nele se nota, à primeira vista, como, do início ao fim, se descreve não uma vida espiritual a serviço da missão, mas uma vida espiritual apostólica, na “consagração”, que tem, em si mesma, uma “verdadeira fecundidade apostólica” (27). A palavra “consagração”, além de seu alcance “carismático”, significa também a consumação e o acabamento da experiência espiritual. Nossa experiência dehoniana, em germe na experiência cristã, se realiza no serviço de sua missão.

147  O n. 9 merece ser meditado atentamente. É muito denso:

–   esta situado entre duas citações cuja aproximação não é fortuita (1 Jo 4,16 e 1 Cor 12,3).

–   O breve desenvolvimento central culmina na expressão “para seguira Cristo”. Note-se ainda a menção às três virtudes teologais, em sua interdependência; a expressão do “radicalismo” evangélico que vamos reencontrar nos números 13 e 14, quando se trata de nossa “vocação religiosa” e a evocação dos “desafios do mundo”. A esta expressão fará eco, desenvolvendo-a ainda mais, o que será dito, em os números 35 a 39 que tratam dos “apelos do mundo”.

148  Já foram observadas, aqui, como em 16 e 26, as três grandes referências ao mistério do Cristo e da Igreja e à ação do Espírito (cf. I, 3.2.2.).

149  Notemos, ainda, o movimento do texto, marcado pela indicação dos três “momentos” da experiência de fé: “Iniciados… acreditamos… confessamos”. Há também breve, mas significativa alusão à necessidade de fortalecer e manifestar a fé recebida (cf. Rom 10,8-10). Esta experiência de fé é bem entendida e apresentada na perspectiva da vida religiosa apostólica.

150  Enfim, a própria vocação religiosa está explicitamente ligada à referência à nossa iniciação batismal e eclesial. O n. 13 dirá: “Radicados no Batismo e na Confirmação, a nossa vocação religiosa é um dom particular, para a glória de Deus, para testemunhar o primado do Reino e para alcançar a santidade pela caridade perfeita, que é vocação universal de todos os batizados (cf. n. 13). A expressão “com todos os nossos irmãos cristãos” (9 e 13) claramente manifesta esta verdade. Este é um dos princípios evangélicos e teológicos da vida religiosa lembrados pelo Concílio (cf. LG 44 e PC 5) e que a Ecclesiae Sanctae pedia para ser bem sublinhado na revisão das Constituições: “Principia evangelica et theologica de vita religiosa eiusque unione cum Ecclesia”.

2. As linhas mestras de nossa vida espiritual

151  A descrição da experiência e da vida dehoniana se desenvolve progressivamente ao longo de todo o texto, em torno de três grandes linhas mestras, que se encontram em cada subdivisão e cujo paralelismo fizemos notar (cf. I, 3.2.3.):

–   a descoberta e a abordagem da Pessoa do Cristo e de seu mistério e de sua missão, através, principalmente, do mistério do Lado Aberto e do Coração Trespassado: nn. 2-3… 10-12/19-21;

–   vida de adesão e de união na caridade, experiência da presença ativa do Cristo, vivida na união à oblação reparadora de Cristo, como princípio e centro de nossa vida: nn. 4-5… 13-14/17-18/22-24.

–   Testemunho profético, em vista da instauração do seu Reino nas almas e na sociedade, a serviço da missão salvadora do Povo de Deus, no mundo de hoje: nn. 4-5/6-7… 23-39.

2.1. “Abordagem”comum do Mistério do Cristo

152  “Iniciados na Boa Nova de Jesus Cristo…”.

153  A luz de Mc 1,1, entendemos esta “Boa Nova de Jesus Cristo” no sentido (epexegético) do Evangelho que é Jesus Cristo. Somos iniciados não somente em sua doutrina e ensinamento, mas a respeito de sua Pessoa. Este “evangelho” é a “norma última” da vida cristã e, a título particular, da vida religiosa (cf. PC 2). Nós “aprendemos” a Cristo (cf. Ef 4,20) e somos seus “discípulos” (manthanein – mathetês). Esta “iniciação” não é simples informação, mas “in-formação” pela “forma” de Jesus Cristo.

2.1.1. Os nomes de Cristo

154  Ao longo de todo o texto, a Pessoa e a presença do Cristo são pólo referencial privilegiado:

–   no começo e no fim, há uma espécie de grande “inclusão”: n. 9: “Fomos iniciados na Boa Nova de Jesus Cristo…”; n. 39: “… empenhando-nos, sem reserva, no advento da nova humanidade em Jesus Cristo”;

–   Ao longo de todo o texto, sob diversas formas, o nome de Cristo aparece, mais ou menos, 40 vezes, em trinta números. A partir destes “nomes de Jesus” se depreende um esboço de cristologia (cf. a famosa obra prima de Luis de Leon, 1583, “Os nomes do Cristo”. 14 nomes são estudados).

155  Praticamente, a referência a Cristo ou, melhor, a sua presença está no começo, no centro e no fim. Está sempre também como pano de fundo de todo parágrafo, da maior parte das frases e no “princípio e no centro de nossa vida” (17): “Sua caminhada é a nossa caminhada” (12), “Doando-nos aos irmãos com e como Cristo” (21), seguir a Cristo em solidariedade efetiva com os homens (22); em vista “do advento da nova humanidade em Jesus Cristo” (39); “Ele é o Primeiro, o último, Aquele que vive” (12), Ele é o “único necessário” (26).

156  Neste sentido, o texto de 1979 em relação ao texto de 73, é, de certa forma, ainda mais significativo e unificado. A modificação do plano pelo deslocamento dos números sobre as “aspirações do mundo” acentuou a relação única de nossa vocação e de nossa vida com a Pessoa e a missão de Cristo. Vê-se, agora mais claramente que nosso olhar sobre o mundo, nossa atenção a seus apelos e às suas aspirações têm sentido, luz e conteúdo a partir desta relação. É no próprio Coração de Cristo –  muito mais que da constatação das necessidades do mundo – que se origina nossa vocação religiosa e que nossa oblação adquire todo seu alcance apostólico e reparador.

157  Tudo isso também, pode-se afirmar, “corresponde” à experiência e à intenção do Padre Dehon e à própria natureza da vocação e vida religiosa.

2.1.2. Dois textos

158  Dois textos maiores descrevem brevemente o que o n. 16 chama de “abordagem comum” da Pessoa do Cristo, numa descoberta progressiva: “cada vez mais” (17):

–   nn. 10-12: primeira abordagem desta experiência de fé que fazemos “com todos os nossos irmãos cristãos;

–   nn. 19-21: atenção particular (abordagem particular) ao que corresponde à experiência do Padre Dehon; a referência ao Lado Aberto do Crucificado estabelece o ponto de vista desta abordagem.

159  São, pois, dois textos sucessivos, cada qual bem situado em seu contexto imediato e dentro do desenvolvimento lógico das Constituições. Não são duas abordagens diferentes e paralelas; é o aprofundamento de uma única contemplação.

160  Os evangelhos foram escritos como testemunhos. Eles testemunham a abordagem e a contemplação da vida e da morte de Jesus, experimentadas pela comunidade cristã (e pelos evangelistas, cada qual à sua maneira), à luz da Ressurreição e sob a ação do Espírito. Somos convidados, pedagogicamente, para um processo semelhante. Um caminho de “abordagem comum” é nos indicado: O acontecimento e o mistério do Lado Aberto. É a via que o evangelista nos aponta, recordando a palavra do profeta Zacarias: “Videbunt in quem transfixerunt…”. “Eles olharão para (naquele) que transpassaram”. A contemplação do Lado aberto como via de abordagem do mistério do Cristo, é nos proposta, como para o Padre Dehon, como via privilegiada e preferencial de descoberta progressiva e “dehoniana’. da Pessoa do Cristo, que leva a uma vida espiritual de Padre do Coração de Jesus.

161  Estes dois textos merecem análise detalhada e atenta meditação:

–   quanto ao movimento paralelo que se observa do começo ao fim,

–   e quanto à apresentação que aí é feita da missão do Cristo, de sua presença, de sua presente ação e do que ele é para nós e para nossa vida.

162  O vocabulário e o uso dos tempos, tudo aí tem seu particular interesse. É de se observar como o segundo não é simples retomada do primeiro.

 

163  A. texto: nn. 10-12: Novo Adão

164  Em os números 10-12, destacamos, como de particular interesse para nossa vida espiritual SCJ, estas três expressões:

–   “em obediência ao Pai”

–   “a serviço do Reino”

–   “com sua solidariedade para com os homens”.

 

165  Em obediência ao Pai

166  É a chave de interpretação dos mistérios da vida de Cristo, de cada um de seus atos e de sua missão.

167  Segundo Sao João, nesta obediência, a Pessoa do Verbo revela-se “voltado para o Pai” (cf. Jo 1,1), o Filho como “servidor”, até ao grande grito de abandono na cruz (cf. Mc 15,34). O evangelho de S. João está repleto destas referências à vontade do Pai. O famoso hino de Fil 2,6-11, apresenta uma descrição impressionante da obediência de Cristo ao Pai.

 

168  A serviço do Reino

169  “Prestou o seu serviço em prol das multidões” (10). A noção e a realidade do Reino dominam a perspectiva sinótica (e também apocalíptica) do mistério de Jesus. É referência e fio condutor que devem ser seguidos ao longo de todo o texto das Constituições a respeito de diversos temas: cf. nn. 13, 29, 37-38, 41-43, 48, 54, 60…).

170  O texto multiplica as expressões: um mundo novo, o da liberdade dos filhos de Deus, do Homem novo na justiça e na caridade verdadeiras. Estas palavras: liberdade, justiça, santidade, verdade, compõem o conteúdo da redenção. Cada uma destas palavras é prenhe de sentido na Escritura, na Tradição teológica e espiritual. Encontramo-las, de novo, em os números 35-39, quando se fala das “expectativas do mundo” e das aspirações de nossos contemporâneos que nós compartilhamos e que relacionamos com a vinda do Reino de Deus, prometido e realizado no seu Filho (cf. 37). Para além, de todas estas “expectativas”, o Reino “encontrará a sua realização” (10). Observe-se, também, a “cronologia” deste Reino: anunciado, já em germe, o Cristo já está agindo e está no meio de nós, a redenção já está presente… e, no entanto, ainda é esperada como possível e é nos oferecida. Esta “cronologia” é o onde de nossa vida espiritual apostólica, segundo a perspectiva aberta pelas duas citações de Rom 8,22-23 e 1Cor 15,28.

 

171  Por sua solidariedade com os homens

172  É a própria lei da Encarnação e de toda a vida “em seguimento de Cristo”.

173  A palavra “solidariedade” deve também ser seguida em todo o texto (cf. 10 e 29: solidariedade de Cristo; 22 e 29, nossa solidariedade).

174  A expressão é particularmente significativa: “Com sua solidariedade para com os homens… Ele (Cristo) revelou o amor de Deus” (10). Segundo 1 Jo 4,7-16, amando-nos uns aos outros, testemunhamos que Deus nos amou e que Deus é amor. Voltaremos a este texto, quando se tratar do sentido de nossa oblação e da teologia do ágape de que ela depende. Se nossa oblação é “união à oblação de Cristo” (6 e 17), esta solidariedade do Cristo com os homens interessa-lhe profundamente.

175  Neste primeiro grande texto de nossas Constituições, é a figura do Cristo que sobressai, nesta “abordagem” de seu mistério. Cristo vive seu amor ao Pai em seu amor pelos homens. Ele revela o amor do Pai, vivendo conosco. Nele o Pai manifestou seu amor.

176  A contemplação dos mistérios do Cristo e o exercício da união com Ele em seus mistérios (cf. 77), adquirem assim todo o seu significado, numa perspectiva não só de perfeição e de imitação, mas de união no mistério e de participação efetiva na própria missão do Cristo: “A sua caminhada é a nossa caminhada” (12). Este “exercício”, quaisquer que sejam suas modalidades, é essencial e fundamental, estrutural mesmo, na vida espiritual cristãe, a fortiori, em nossa vida espiritual.

177  Esta “abordagem” é a da experiência do Padre Dehon “pela fé no Filho de Deus que me amou e se entregou por mim” (cf. n. 2). A fórmula de nossa confissão de fé, em n. 9, está na mesma linha: o Cristo Senhor “no qual o Pai nos manifestou o seu amor e que continua presente no mundo para o salvar”. A expressão mais evocadora deste amor do Pai, revelado e sempre agindo no amor de Cristo, é, para nós, como para o Padre Dehon, o Lado Aberto.

 

178  B. texto: nn. 19-21: Coração da humanidade e do mundo

179  Este segundo texto cristológico, em seu conjunto e em seu movimento geral, é paralelo ao primeiro (10-12):

–   missão do Cristo: (10 e 19)

–   sua presença e sua ação presente (11 e 20)

–   o que Ele é para nós e para nossa vida (12 e 21).

180  Nestes dois textos, há um esboço panorâmico do desígnio redentor – da economia da salvação, como dizem os Padres – com matizes e diferentes tonalidades. Evidentemente, o segundo texto não é simples repetição do primeiro.

181  Em os nn. 10-12, Cristo é, praticamente, o sujeito de todas as frases: Ele é o ator obediente…

182  Em 19-21, é o Pai que é o sujeito, na vida e na missão de Cristo. (Os verbos em o n. 19, estão todos no passado). A ação de Cristo, ao contrário, é apresentada sempre no presente. Em os números 10 a 12, temos uma apresentação mais “sinótica”, em os números 19-21, mais “joanina”. Ou, para retomar as fórmulas de nossos teólogos, temos a dupla perspectiva complementar de uma “cristologia de baixo” e uma “cristologia do alto”. O segundo texto, centralizado, sobretudo, na presença atual e atuante de Cristo, “Coração da humanidade e do mundo”, desenvolve a fórmula do n. 11: “Cristo rezou pelo advento do Reino, que já está em marcha com a sua presença no meio de nós”. O símbolo do “Coração” caracteriza esta presença: este Reino, cujo coração é Cristo, é um Reino de amor. Sua lei de salvação é o amor que regenera, recria, reúne, “recapitula”, “segundo o desígnio do amor do Pai”.

183  Em os números 19 a 21, a palavra “amor” aparece seis vezes; em 10-12, ao contrário, uma só vez. Ambos os textos estão, naturalmente, sob o signo do amor de Deus, revelado em Jesus Cristo (cf. n. 10), mas, no segundo texto, há uma abordagem e atenção particulares. Ou, ao menos, um toque todo especial. O caminho desta abordagem é a contemplação do “Coração trespassado”, que leva ao culto ao Coração de Cristo, plenamente integrado no próprio mistério do Cristo, no “movimento de seu amor redentor” (21).

184  A imagem e a expressão “Coração da humanidade e do mundo”, (de sabor bastante teilhardiano), repetem, sem contradizer, mas para explicitar, a imagem da “Cabeça”, tão cara a São Paulo (cf. Ef., Col.). A imagem do “coração” está aqui estreitamente ligada à Ressurreição e ao Senhorio de Cristo: um Reino de amor – para a “amorização” do mundo, diria Teilhard de Chardin – “fonte de desenvolvimento das pessoas e das comunidades, que encontrará sua plena manifestação e recapitulação no Cristo (ponto Omega).

185  Se o culto ao Coração de Jesus, quaisquer que sejam as referências e alusões a respeito, não é aqui diretamente considerado, ao menos, porém, existe uma boa introdução e uma larga perspectiva, em que a revelação do Coração encontra seu lugar e seu sentido.

2.2. “Contemplando o Coração de Cristo…”

186  A contemplação do Coração de Cristo faz parte essencial de nossa experiência dehoniana. Devemos afirmar nossa fé de “cristãos”, “vivendo-a na caridade” (9). “Contemplando o Coração de Cristo” (21), símbolo privilegiado de seu amor, “somos fortalecidos na nossa vocação” (21). Não se trata, pois, de uma excrecência devocional, mas de um caminho privilegiado de abordagem. As novas Constituições, porém, substituem a imagem e a mensagem de Paray-le-Monial, pela referência ao mistério do Lado Aberto de Jo 19,31-37. E isto pode levantar um pequeno problema de fidelidade dehoniana.

187  As antigas Constituições (de 1885 e de 1906-1956) começavam com a imagem e a mensagem de Paray-le-Monial. As palavras de Nosso Senhor a Santa Margarida Maria impressionavam profundamente nosso Fundador, como ele própria dizia (cf. NHV XII, 167). Esta imagem e mensagem inspiram o Diretório Espiritual e os escritos do Padre Dehon. Durante toda a sua vida, ele se manterá fiel a elas, em sua vida pessoal e em seu apostolado de instauração do Reino do Coração de Jesus. Na introdução ao Diretório Espiritual, ele declara: “Respondemos aos apelos de Nosso Senhor, em Paray-le-Monial” (DSP, p. 3).

188  Trata-se, pois, de algo importante para nós, para o fortalecimento de nossa vocação (cf. 21) e também para o “ideal espiritual” que determina nossa participação na “missão salvífica do Povo de Deus no mundo de hoje” (2-27).

189  É claro que a passagem do “Sagrado Coração” de Paray-le-Monial ao “Crucificado de Lado Aberto é mais que simples substituição de imagem, por razões estéticas ou de adaptação cultural ou pastoral. É afinal, exigência da atualização, para a qual a Igreja nos convida.  Doutrinal e espiritualmente é uma espécie de “conversão”, um retorno às fontes do conceito e da prática do culto ao Coração de Jesus. Esta conversão se realiza:

–   em comunhão com o pensamento e a vida da Igreja, está na linha da encíclica “Haurietis aquas” e do desenvolvimento teológico, espiritual e pastoral que precedeu e seguiu a encíclica. É evidente que nossas antigas Constituições não podiam levar em conta tudo isso;

–   com profunda fidelidade, não à apresentação nem às formas, mas à natureza e ao próprio sentido do culto de Paray-le-Monial. Entre todas as formas de culto ao Coração de Jesus a de Paray-le-Monial, sem dúvida, é a que mais direta e constantemente se refere ao fato e ao mistério do Lado Aberto de Jo 19,31-37, na perspectiva reparadora que lhe é própria;

–   enfim, com fidelidade dehoniana. Basta seguir o Padre Dehon em sua contemplação e em seus ensinamentos, na evolução de sua atitude fundamental e na prática da meditação do mistério do Lado Aberto.

190  As Constituições de 1885 viam, neste mistério, a figura de nossa “profissão de imolação”. “A profissão de imolação que caracteriza os Padres da Sociedade do Coração de Jesus pode ser comparada à lança do centu- riao que abriu o Lado do Salvador e consumou seu sacrifício” (V, 113).

191  “É o espírito de imolação por amor que dá à Sociedade seu caráter próprio” (V, 152). O texto é retomado no Diretório Espiritual (III, V, par. 1).

192  Sobre o mistério, Padre Dehon tem belas páginas em “Etudes sur le Sacré-Coeur (114-127), em “Couronnes d’amour” (II, 5. mistério) e no Diretório Espiritual: meditação da Paixão (II, I par. 4), da experiência de Maria, no Calvário (II, II par. 3) e a propósito da experiência de São João (II, IV par. 3).

193  Sem ignorar a tradição doutrinal, patrística e mística, Padre Dehon prefere o sentido espiritual e devocional, para exortar ao dom total (oblação), como resposta de amor, em espírito de reparação. O mistério do Calvário é meditado como exemplo maravilhoso como lição para a “nossa vocação” e não tanto como a fonte desta vocação. Nossa fidelidade consiste em ir até o fundo de seu pensamento. Ele próprio nos disse: “A abertura do Coração de Jesus é o mistério dos mistérios, o fundamento de todos os outros, o mistério do amor que foi entrevisto pelas épocas anteriores e que nos foi plenamente revelado” (Couronnes d’amour, II, 5. mistério, 1a. med.).

194  Nesta linha de “fidelidade dinâmica”, somos convidados a contemplar com São João, o Lado Aberto.

195  Em primeiro lugar, é o próprio mistério que nos atrai: a abertura do Lado, a água e o sangue, jorrando do Lado Aberto, o mistério do Cordeiro imolado, o mistério pascal do sangue derramado, o mistério pentecostal do dom do Espírito, o nascimento da Igreja e do homem de coração novo, recriado segundo Deus…[1]

196  A linha de tradição espiritual e mística do culto e da entrada no Coração de Jesus, mais familiar ao Padre Dehon, está sempre presente e subjacente em nossas Constituições, toda vez que se fala de “união íntima com o Coração de Jesus”, de “adesão a Cristo, nascida do mais íntimo do coração” (5), de “união com Cristo, no seu amor pelo Pai e pelos homens” (17), de “comunhão com Cristo” (22), de “viver na intimidade do Senhor” (28). Neste sentido. Padre Dehon interpretava e meditava a expressão de Jo 19,37: “Videbunt in quem…”. Eles olharão para dentro (cf. “Année avec le Sacré-Coeur”, I, p. 363). Em “Vie d’amour”, ele escreve: “No mistério de minha Paixão – faz Cristo dizer – eu sou, verdadeiramente, um livro escrito por dentro e por fora (cf. Ap 5,1). E o que está escrito é meu amor… Nao vos contenteis em ler e admirar esta divina escritura, de fora; penetrai até meu Coração e então vereis” (7a. med. p. 72).

197  Contemplando, assim, o Coração transpassado do Cristo, descobrimos nele:

–   a manifestação última e suprema do amor de Deus, “usque ad finem”, no dom total do Filho, a obediência e a oblação de Cristo, “… ut adimpleretur Scriptura”;

–   o mistério do pecado no Cordeiro imolado, “… in quem transfixerunt”;

–   o apelo ao testemunho, “… ut et vos credatis”.

198  Estas três grandes linhas de contemplação do mistério do Lado Aberto confirmam as que sublinhamos na experiência do Padre Dehon.

199  Para ele, é o “mistério dos mistérios”. Não é simplesmente o maior e o mais belo dos mistérios (como na expressão: “Cântico dos cânticos” ou “vaidade das vaidades”), mas é o fundamento, a confirmação e a revelação do sentido de todos os outros; por ele e a partir dele, somos convidados a contemplar todos os outros mistérios; é nosso caminho de abordagem da Pessoa e do mistério do Cristo.

200  A contemplação do Lado Aberto é exigência de fidelidade dinâmica; traz o maior proveito a um verdadeiro e profundo culto ao Coração de Jesus e à verdadeira fecundidade da vida dehoniana, que é vida de amor e reparação, concebida e vivida como vida de caridade; caridade-ágape, que preside nossa vida, a fim de que sejamos “profetas do amor e servidores da reconciliação” (7), e nos empenhemos “sem reserva no advento da nova humanidade em Jesus Cristo” (39), isto é, do “homem de coração novo, nascido no Coração de Jesus, aberto na cruz, animado pelo Espírito, na comunidade de amor, que é a Igreja” (3). Uma “vida espiritual”, alimentada na contemplação do Coração de Jesus não pode ser autêntica se não for “Profética”.

[1] Cf. a este respeito o livro do P. Carminati: É venuto nell’acqua e nel sangue. É um estudo crítico e exegético, patrístico, doutrinal e espiritual.

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