12 agosto 2022
12 ago. 2022

A personalidade do “très bon père”

Há 97 anos, o P. Dehon morreu. Apresentamos uma palestra de Dom Philippe, sucessor de Dehon, apresentada em Leuven em 1938 e publicada na Revista Dehoniana em 2014.

por  Joseph Laurent Philippe, scj

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Conferência feita por Dom Joseph Laurent Philippe

Tratar da personalidade de nosso venerado Fundador é enfrentar um problema muito complexo: primeiro, por causa da vasta compreensão dessa personalidade em si mesma; e, segundo, pela influência que exerceu na Obra à qual temos a honra de pertencer.

Uma personalidade com limitações

Hoje, quando falamos de personalidade, de uma pessoa importante, gostaríamos de vê-la completa; gostaríamos, em nossa percepção, de apreciá-la na sua totalidade como uma personalidade já pronta, em absoluta perfeição, sem defeitos, independentemente das contingências humanas às quais toda personalidade humana está necessariamente sujeita. Ora, somente Cristo e a Virgem Maria eram modelos completos deste tipo.

Se consideramos o muito Bom Pai, devemos encontrar nele deficiências, limitações, não certamente do ponto de vista moral, mas limitações de poder, na vontade. Se não fosse assim, Padre Dehon não seria mais um homem, pois toda natureza humana contém necessariamente imperfeições.

Outro ponto que não podemos perder de vista é que devemos acreditar cada vez mais, na condução lenta, progressiva, mas certa, da Providência divina. Esta orientação encontra-se em toda a personalidade.

No ano passado, o Papa Pio XI disse, em substância, que antes ele não sabia o que era o sofrimento físico; que agora tem a experiência do sofrimento e que, portanto, tem uma melhor compreensão do estado de alma, em um organismo sofredor.

Na personalidade do Padre Dehon, portanto, vamos parar para considerar a direção da Providência e a correspondência do muito Bom Pai a esta direção.

Se tomarmos o muito Bom Pai no contexto de uma família que poderia ser chamada família de posses, na época em que ele viveu (declínio da Revolução Francesa, início dos tempos contemporâneos), nada aparentemente o preparou para o papel que a Providência havia reservado para ele. Ele tinha uma mãe piedosa, é verdade, mas seu pai, sem ser um descrente e opositor da religião, era, no entanto, indiferente. O estudo do direito, destinado a levar o Padre Dehon à advocacia, parecia estar longe de seu objetivo. Ele fez grandes viagens, chegando a Roma impregnado das ideias e doutrinas galicanas, ensinadas na Universidade de Paris. Foi em Roma que ele encontrou a mais refinada “romanidade”. Ele participou, como secretário, escolhido entre os estudantes do Seminário francês, do Concílio Vaticano I, no qual a infalibilidade pontifícia foi declarada como um dogma de fé. Foi lá que Padre Dehon pode perceber a grande importância do Sumo Pontífice, que se ergue como um farol brilhante sobre o mar agitado do mundo, envolto por tantas perturbações e revoluções. Foi esta estima pelo Papa o motivo de sua fidelidade inquestionável ao Pontífice, não apenas quando definia ex cathedra um dogma de fé ou moral, mas também quando falava através do órgão das congregações romanas, nos consistórios, nas encíclicas ou decretos. Padre Dehon bebeu desta fonte.

Assim plasmado no centro do catolicismo, ele veio a Saint Quentin como vigário, no meio de confrades ainda imbuídos de ideias galicanas sobre a infalibilidade (extensão excessiva no campo de aplicação desta infalibilidade, reservas a serem feitas, conveniência, etc.). Padre Dehon se apegou à doutrina que havia aprendido em Roma, com o risco de se distinguir deles e de atrair dificuldades da parte deles.

Se olharmos para as diferentes etapas da vida formativa de Padre Dehon, desde a casa da família até sua atividade apostólica na diocese de Soissons, fica claro que a Providência tinha planos precisos para ele. Ela continuou ajudando-o e conduzindo-o de maneira ainda mais brilhante na fundação da Congregação.

Felix culpa

Também Padre Dehon passou pela prova mais cruel. Ele cometeu um erro e a consequência de seu erro foi a suspensão de sua amada Obra, à qual havia dedicado sua vida. Mas felix culpa! Padre Dehon, admirável em sua submissão, obediência e humildade; uma humildade que sabe acolher sem a mínima hesitação um descrédito, mesmo que se trate do que lhe é mais caro; uma humildade sempre pronta a seguir a vontade de Deus, expressa pelos superiores.

Se tomarmos a Obra como ela existe hoje, não corresponde mais ao plano original do Padre Dehon.

A Providência nunca mostrou a algum fundador o trabalho que se desenvolveria no futuro. Nem o Bom Pai viu com olhos proféticos todas as fases e todas as evoluções pelas quais a Congregação recém fundada teria que passar, antes de chegar à sua constituição definitiva. Aconteceu que ele se enganou. E foi justamente através das contradições que a Obra tomou a sua direção. À medida que progredia, Padre Dehon via sua lenta e contínua evolução e desenvolvimento em direção a esta Obra desejada pela Providência. No início, Padre Dehon trabalhou com seu bispo na diocese de Soissons. Fundou o Colégio Saint Jean, que Dom Thibaudier queria perpetuar. Por esta razão, aconselhou-o a fundar a Congregação à sombra dessa casa de formação. Padre Dehon encontrou o modelo para seu novo instituto nas “Servas do Coração de Jesus“.

Trabalho missionário

Ele lança as bases para uma obra diocesana, não universal.

Quando duas vocações eminentes se apresentaram para serem admitidas na Congregação, com o objetivo de dedicar-se ao trabalho missionário, ainda inexistente, Padre Dehon respondeu: Desde o início pensei nas missões como um dos objetivos da Congregação, mas não sabia como realizá-las”. Ele, o homem social, o homem dos trabalhadores, lançou seus filhos no campo das missões, porque o via como o propósito da Província. Hoje, a Congregação quase abandonou a questão social, porque as missões prevaleceram. Os colegas do bispo Philippe em Paris, muitos dos quais se tornaram bispos, disseram que os Sacerdotes do Sagrado Coração eram, acima de tudo, sacerdotes da questão social. Era a Providência que o queria de outra forma.

Foi com o objetivo de abrir um campo de missões no mundo pagão para seus filhos espirituais que Padre Dehon empreendeu as grandes viagens à China, Índia e Brasil. Nas provações que se abateram sobre a nascente Congregação e que tocaram tão de perto o Padre Dehon, a Providência interveio visivelmente para direcioná-lo cada vez mais, através de suas provações, para o objetivo que desejava alcançar. Apenas três anos após a fundação (1877-1880), a Congregação foi, por um decreto da República, expulsa da França e se estabeleceu às margens do Mosa, na Holanda. Outro decreto, emitido em 1904, decidiu o fechamento de Soissons. A Congregação, sob esta liderança, mudou-se para outras margens e assim ampliou seu raio de ação, assumindo um caráter mais universal e internacional; numa palavra, um caráter mais católico. Esta foi a origem de outras dificuldades que Padre Dehon encontrou da parte de alguns dos seus colaboradores imediatos que, por causa de suas ideias preconceituosas, não o entendiam: eles queriam uma obra diocesana, uma obra de apostolado ao interno da França e, portanto, se opunham à ideia de missões em particular. A partir daí, houve uma sombra de cisma, uma espécie de cabala contra Padre Dehon, da qual resultaram muitas deserções. Foi um grande erro da parte deles, erro esse no qual nosso Fundador nunca esteve envolvido. Teria sido o eclipse da Obra que hoje brilha em todo o mundo.

A Congregação é construída sobre bases sólidas

Certamente ainda hoje existem dificuldades. Ainda ouvimos reflexões derrotistas, que às vezes criam uma atmosfera de pessimismo.

Que haja deficiências é inegável. Esquecemos, ou parecemos esquecer, que existe uma Providência que dirige tudo. Não gostamos de vê-lo, porque não nos agrada deixar-nos conduzir por ela. Esta mentalidade, este espírito comunista, carregamo-lo dentro de nós, inconscientemente sem dúvida, mas eficazmente. A Congregação tem sofrido e ainda sofre com este espírito. Não esqueçamos que ela repousa sobre bases sólidas, inabaláveis, pode-se dizer, em sua espiritualidade que é teologicamente e asceticamente inatacável. Esta espiritualidade foi maravilhosamente destacada por Sua Santidade Pio XI, na Encíclica sobre a Reparação “Miserentissimus Redemptor” (1928). Temos nossa missão na Igreja.

Até agora só falamos do papel da Providência na personalidade do Padre Dehon: como ela o orientou em sua formação inicial, na sua estadia em Roma, em Saint-Quentin, na fundação da Congregação, no desenvolvimento e nas tribulações pelas quais passou. Como Padre Dehon correspondeu a esta direção?

Esta correspondência pode ser resumida em uma palavra: submissão externa e interna, perfeita e completa.

O bispo Philippe, ainda jovem escolástico, tinha o Padre Dehon como diretor espiritual. Um dia, quando o (futuro) bispo lhe perguntou que resolução deveria tomar, Padre Dehon lhe falou sobre a constância do temperamento: “Hoje, depois de quarenta anos de experiência, vejo quais esforços devem ser feitos, que heroísmo é necessário para manter a constância de humor”. Pois tal era o objetivo de seus esforços na vida espiritual: permanecer sempre igual a si mesmo, apesar dos desconhecimentos, dos insucessos, dos aborrecimentos: colocar nisso uma nota de doçura, uma nota de otimismo confiante, ver as coisas para o bem, à luz da Providência. Isto nunca falha. Esta deve ser a nota característica do Sacerdote do Sagrado Coração. Isso no que se refere ao lado interno.

Estabelecendo o Reinado do Sagrado Coração

Muitas pessoas imaginam que a perfeição consista em visitar muitas casas e países, em fazer grandes viagens, como fez Padre Dehon. Isto não é necessariamente verdade. Dehon viajou muito, mas em todos os lugares e sempre foi guiado pelo único motivo: estabelecer o Reino do Sagrado Coração nas almas e na sociedade. A amplitude de visão que o caracterizava, certamente se devia também à sua acurada formação e ao contato com pessoas distintas: mas estas são apenas as premissas. Ao interno, levava uma vida de estudo contínuo. Sua inteligência estava sempre em alerta. Se não era feita para ir em profundidade era, no entanto, muito vasta, percebia bem as coisas em toda a sua amplitude, sabia como sintetizar. Basta ler as “Crônicas” na revista “Le Règne du Sacré-Coeur dans les âmes et dans les sociétés” para percebê-lo. Captava imediatamente as ideias principais que colocava no papel, discernia prontamente as ideias dominantes que dirigiam os movimentos e as revoluções e, em poucas palavras, fazia-lhes uma avaliação. Uma preocupação perseguia-o constantemente: o Reino de Cristo. Em algumas pinceladas, Padre Dehon pinta magistralmente o quadro desagradável de Saint Quentin, este microcosmo da classe trabalhadora. Ali estão oito sacerdotes: o pároco e sete vigários. Cada coadjutor tem um certo número de fiéis sob seus cuidados, cujo número total chega a cerca de mil indivíduos, a quem visita e que recebem hospitalidade… Ao lado deles, vinte mil trabalhadores estão perdidos; não têm mais nenhum contato com Cristo e ninguém se importa com eles. Devem ser conquistados. O primeiro a assumir esta tarefa foi o jovem e último coadjutor, Léon Dehon. É uma tarefa sobre-humana, e mesmo assim ele a assume. Ele se lançou, de todo coração, ao trabalho de reconquista: fundou jornais, conferências, etc. Ele desconfiava de todas essas almas piedosas sem, contudo, rejeitá-las. É para os trabalhadores, a porção favorita do patrão, a quem vão todos os seus cuidados. Esta é a Ação Católica.

A palavra “Ação Católica” é nova, mas a realidade, a coisa em si, é tão antiga quanto o Evangelho, no qual já encontramos a Ação Católica em seu pleno significado.

Um homem com ideias amplas

O muito Bom Pai era um homem de ideias amplas porque carregava dentro de si o amor de Cristo; um amor que gradualmente o levou à devoção ao Sagrado Coração, a cujo serviço dedicou a sua vida.

Ele foi acusado muitas vezes de ter tido demasiada confiança em homens que não eram dignos disso, de ter sido enganado. Na verdade, ele foi enganado por alguns que abusaram de sua confiança. Enganou-se ao escolhê-los como colaboradores. Deveria ser culpabilizado por isso? Não. Padre Dehon, apesar de sua eminente santidade, continuava sendo um homem e, como tal, estava sujeito a fraquezas e erros, prerrogativa dos homens. Somente pessimistas e aproveitadores não se enganam, pois não ousam empreender nada.

Se Padre Dehon cometeu um erro ao escolher um ou outro, a quantos outros, ao contrário, ele atraiu à órbita de sua personalidade… Quantos ele não transformou em sujeitos de elite, líderes, luzes, iniciadores, santos? O muito Bom Pai manteve sua confiança na pessoa; sua amplitude de visão não se estreitou por causa de certas deserções. Deus sabe da angústia cruel por que passou quando viu seu trabalho ameaçado por essas traições. Também ele tinha momentos de abatimento: às vezes, depois da saudação, podia-se vê-lo, com a fronte obscurecida, apoiada na mão, que refletia sobre si: sofria cruelmente com essas traições e com a baixeza humana. Ele sofreu, mas cada vez levantou-se diante da provação; pois era a hora da Providência, que nunca abandona aqueles que nela depositaram sua confiança.

A provação passou e a Obra existe hoje; manteve sua vitalidade porque seu Fundador lhe deu o sopro vivificador de sua alta personalidade; foi purificada cada vez mais pelo contato com o Sagrado Coração e a Eucaristia. Este é o segredo de sua vitalidade, que lhe foi comunicada por Padre Dehon.

Ele nunca esqueceu sua adoração. Mais de uma vez, às 11h30 da noite, após um dia cheio de preocupações e trabalho de todos os tipos, ele ia à capela para fazer sua adoração.

Esta mente ampla nunca deu lugar à mesquinhez que muitas vezes embrutece nossos dias. Ele devia esta amplitude de espírito não apenas à sua formação externa, à sua cuidadosa educação, mas também ao fato de que ele carregava o amor dentro de si. Acima de tudo, ele queria conquistar almas para Cristo, para reconciliar o mundo moderno, especialmente o mundo operário, com o Coração de Jesus, a fornalha ardente da caridade, para jogar o mundo nesta fornalha de amor.

Cabe a nós continuar neste caminho, sem nada perder do espírito inicial em que a Obra foi fundada: a constância de espírito. Só assim poderá avançar no caminho do progresso traçado pela Providência.

Lovaina, aos 18 de janeiro de 1938

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