18 junho 2021
18 jun. 2021

Releitura das Constituições (I)

Apresentação em série do "Guia de Leitura" das Constituições, escrito por P. Albert Bourgeois.

por  P. Albert Bourgeois, scj

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Em sua carta de 2 de fevereiro de 2021, nosso Superior Geral convidou toda a Congregação a dar um novo enfoque ao Padre Albert Bourgeois como o Superior Geral da renovação da Congregação no espírito do Concílio Vaticano II. As Constituições são o fruto desta renovação e em 14 de março de 2022 comemoraremos o 40º aniversário de sua aprovação. Uma iniciativa que estamos promovendo é a apresentação de um “Guia de Leitura” de números 1-39 que o P. Bourgeois escreveu em 1982. Este texto existia aqui e ali em vários formatos, e agora podemos compartilhá-lo com toda a Congregação em cinco idiomas. O mérito deste “Guia de Leitura” consiste antes de tudo na autoridade do P. Bourgeois devido à sua proximidade com o processo de elaboração das Constituições. Este Guia de Leitura não comenta cada número individual, mas oferece uma visão geral, identificando dinâmicas e referências internas, trazendo assim à tona seus fundamentos e valores.

Quarenta anos se passaram e ainda assim este texto continua sendo uma leitura muito rica para aqueles que desejam penetrar no espírito das Constituições.

 O “Guia de Leitura” será publicado em várias etapas. A primeira é dedicada ao contexto histórico e teológico do nascimento de nossas Constituições.


I. O Texto

1. “Novas” Constituições

23    Para se entender bem o texto das Constituições será útil, mesmo sem os detalhes históricos, conhecer as principais fases de sua elaboração. A Introdução da edição provisória de 1980: “Etapas de uma renovação” lembra algo a respeito, mas muito brevemente (cf. pp. X-XII). Para informações mais completas recorrer-se- á às “atas” dos Capítulos e das Conferências (Doc VII-XI), de modo especial, ao discurso de abertura da 2ª Conferência Geral, em Doc X, p. 15-18. Os “diários”, distribuídos para informações imediatas à Congregação, oferecem, também, muitos detalhes.

1.1. O itinerário

24    Note-se, antes de tudo, que esta “revisão” ou, melhor, esta “refundição” – trata-se de algo mais que de simples revisão não foi o resultado de uma iniciativa pessoal ou da ação de um grupo, mais ou menos avançado, com pruridos de mudança. Foi a resposta ao apelo da Igreja, como em 1902 e 1923, mas num sentido bem mais amplo e na linha da renovação e das orientações conciliares.

25    O itinerário foi longo e complexo: 12 anos de reflexão, três Capítulos Gerais (totalizando 7 a 8 meses de sessões), uma grande pesquisa, cientificamente preparada e elaborada (ClRIS 1970-1971); duas Conferências Gerais (1969 e 1976), numerosas reuniões e diversas publicações…

26    Foi um caminho percorrido, palmo a palmo, não às cegas, é verdade, mas sem plano predeterminado e fixo. Não havia, como em 1902 e 1923, um esquema diretivo apresentado pela Santa Sé. Havia só orientações e indicações gerais sobre o conteúdo e sobre o tipo de documento, sobre os meios e os prazos de realização; mas não havia um modelo.

27    Assim viveu-se cada momento, venceu-se cada etapa, acompanhando a evolução das mentalidades e das situações, durante doze anos. Foi uma longa caminhada psicológica, social, espiritual e eclesial.

1.2. As etapas

28    1966-1967: foram quatro meses de sessões capitulares, em dois tempos, separados por um ano de trabalho das comissões intercapitulares. Foi o tempo da busca ardente, um pouco inexperiente, mas não sem entusiasmos e fervor generoso. Começa nova tomada de consciência, à luz do fato e dos documentos conciliares: identidade da Congregação, aspirações difusas dos religiosos, das comunidades e das Províncias por uma renovação do ideal, do estilo de vida e da organização interna; e, sobretudo, em relação à inserção eclesial em geral, deseja-se uma definição mais clara da índole e da missão apostólica da Congregação.

29    Os Documenta VII, um pouco prolixos, mas extremamente ricos sob todos os pontos de vista, são o resultado desta longa reflexão, prolongada ainda até a Conferência Geral de 1969 (cf. Doc VIII) e resumida em Diretrizes Capitulares, então publicadas.

30    1972-1973: preparação e realização do XVI Capítulo Geral, em clima social, político e eclesial bastante perturbado. Vive-se, um pouco por toda parte, momento de crise ou, ao menos, de profundas tensões em muitas Províncias. Os Capítulos provinciais e a difícil preparação do próprio Capítulo Geral revelam tudo isto.

31    A este respeito, confira as “Atas” do Capítulo (Doc X): seis importantes questões prévias foram apresentadas desde a abertura dos trabalhos (p. 20-21). Quando se discutiu e se refletiu, com prioridade, durante três dias, sobre a “Justiça no mundo e nossa vida religiosa” (tema do precedente Sínodo episcopal de 1971), o projeto de Constituições, preparado pelas comissões, foi descartado e se começou a redação de uma Regra de Vida.

32    Após alguns incidentes de caminhada, veio à luz um texto que foi aprovado por larga margem de votos e, em geral, bem aceito em toda a Congregação.

33    1979: no XVII Capítulo Geral, há um clima relativamente sereno que revela certa estabilidade e maturidade, nas Províncias. Sente-se e manifesta-se a necessidade de novo estímulo para a renovação profunda da vida religiosa, espiritual e apostólica, alimentada por uma espécie de formação permanente. A revisão da Regra de Vida de 1973 tende para uma “dehonização” mais explícita, quer no conjunto, quer nos detalhes. A palavra de ordem é fazer frutificar o carisma do Padre Dehon, segundo as exigências da Igreja e do mundo.

34    A celebração do Centenário da Congregação (1978) teve um papel importante. Foi a providencial oportunidade de um retorno às fontes, de redescoberta, de atualização e de aprofundamento.

1.3. Observações

35    Este breve resumo não leva em consideração, naturalmente, todas as experiências vividas pelas pessoas, grupos de pessoas ou mesmo por toda a Congregação. Podem-se, entretanto, fazer as seguintes observações.

36    O texto que o Capítulo nos legou é o resultado de trabalho assíduo, efetuado em diversos níveis, através de informações, pesquisas, reflexão e prática. Olhando todo o itinerário percorrido, descobre-se que aí está a vida da Congregação. Nao é um corpo morto ou moribundo; é um corpo que vive e quer viver; com choques, vazios, tempos mortos ou mais apagados e inquietações. Mas há aí vida orgânica, contínua em sua própria renovação. O cotejo dos Documenta VII (ou Diretrizes Capitulares) com as Constituições de 1979 permite discernir continuidade e, simultaneamente, purificação e clarificação. Hás palavras-chave e valores nos quais os membros da Congregaçãò e as comunidades sempre se reconheceram e aos quais sempre aderiram. Foi feita a experiência da realidade e do valor do “espírito” ou, ao menos, da sensibilidade SCJ.

37    Ao longo de todo o percurso nota-se – ainda que se tome consciência do fato apenas mais tarde – a ação do Espírito Santo, guiando e inspirando o esforço humano, pessoal e comunitário, para ajustá-lo aos acontecimentos e às situações, para orientar e adatar a evolução, para vencer as diferenças, para encontrar a coerência e a coesão. Apesar de toda nossa imperícia ou incompetência, sobretudo nos momentos cruciais de 1973, constata-se a presença e a ação do Espírito Santo; o número 15 de nossas novas Constituições testemunha isto, a seu modo: Para cada um de nós, para as nossas comunidades, a nossa vida religiosa é história: desenvolve-se a partir da graça das origens, nutrindo-se daquilo que a Igreja, iluminada pelo Espírito, colhe constantemente no tesouro da sua fé (Cst 15).

38    Por isso, as novas Constituições são, em certo sentido, uma espécie de Deuteronômio para nós. São o Nosso Deuteronômio. Esta expressão explicaremos mais adiante.

2. Constituições “Novas”

39    “Novas” por causa do género literário: é um novo tipo de Constituições. Basta um simples olhar para se dar conta disso. INÍao é “poesia”, mas, à primeira vista, o texto causa espécie e talvez até mesmo, um pouco de mal-estar, quando confrontado com as antigas Constituições.

40    Mas a “novidade” é bem mais profunda.

2. 1. O conteúdo

41    Em primeiro lugar, pelo conteúdo, onde o “jurídico” e o “prático” parecem imersos e afogados no “espiritual”.

42    Por exemplo: dos 39 primeiros números, que vamos estudar, de modo especial, em primeiro lugar, apenas um (o n. 8) é estritamente jurídico. Alguns números sobre a missão eclesial e os compromissos apostólicos (nn. 30-34), em certo sentido, estao também na linha do jurídico. Todo o resto é exposição doutrinal, meditação, exortação.

43    Convém lembrar aqui as duas grandes diretrizes da Santa Sé em relação à revisão das Constituições:

–   distinguir o “Código Fundamental” (Constituições) que deve conter o que, por natureza e na vida do Instituto, é considerado como estável e constitutivo; e o “Código Complementar” (Diretório, Regulamento etc…) que contém as aplicações e as adatações que variam de acordo com os tempos e os lugares;

–   unir convenientemente, no próprio Código fundamental os dois elementos espiritual e jurídico e não elaborar um texto puramente jurídico ou puramente espiritual (cf. ES II, 12-14, 1967).

44    Como observação de valor histórico, notemos que esta integraçãò do jurídico e do espiritual não esteve ausente de nossas primeiras Constituições (1885-1886). Praticamente, ela desapareceu a partir de 1902, nas Constituições latinas, conforme as exigências das “normas” da Santa Sé, naquela época. O jurídico se concentrava nas Constituições e o espiritual no Diretório (espiritual). Era uma dicotomia que trazia inúmeras consequências, sob muitos aspectos, não só para a forma, mas também para a vida.

45    A nova concepção e apresentação nos dão um texto que quer ser ríõo somente preceptivo, mas inspirante também. A integraçãò assegura, de uma parte, o pano de fundo e a motivação doutrinal e espiritual das normas jurídicas; e, de outra parte, confere às orientações espirituais um certo caráter constitutivo que não possuíam no Diretório. O texto das Constituições, novo Código Fundamental, e o Diretório Geral ou Código Complementar constituem, segundo a definição do Capítulo Geral (1979), nossa Regra de Vida.

2.2. O contexto doutrinal

46    Mais que o conteúdo material ou o género literário, o Contexto ou o CUma doutrinal é a mais profunda e a principal novidade das novas Constituições.

47    Quanto ao contexto doutrinal, o Concílio havia formulado princípios gerais de atualização:

–   ensinamento do Evangelho: norma última da vida religiosa e regra suprema de todos os Institutos; _

–   fidelidade ao espírito dos fundadores, à sua intenção especifica, às sas tradições e àquilo que constitui o património de cada Instituto,

–   comunhão com a vida da Igreja, em matéria bíblica, litúrgica, dogmática, pastoral, ecuménica, missionária e social;

–   adequada informação a respeito das condições do homem e traços particulares do mundo de hoje;

–   verdadeira renovação espiritual das pessoas e das comunidades (cf. PC 2).

48    A referência à vida da Igreja, ao mundo contemporâneo e ao espírito do Fundador era, senaò completamente novo, ao menos o mais exigente princípio de ‘‘atualização”. Este princípio define o que se convencionou chamar, entre nós, explicitamente desde 1967, Unha de “Fidelidade dinâmica”: em 1967, nas reflexões preparatórias, em 1973, na primeira Regra de Vida; em 1979, na revisão e na elaboração das próprias Constituições.

49    Tudo isto deverá estar presente e ser objeto de verificação, quando se estudar, explicar e meditar o texto das Constituições, em seus diferentes aspectos: estrutura literária, dinâmica interna, abordagem pedagógica, apresentação da experiência e carisma do Fundador (Capítulo I), de nossa própria experiência e de diversos temas atinentes à vida espiritual e à vida religiosa scj, como: oblaçab, abandono, adoração, reparação, votos, vida comunitária, em suas várias dimensões, e a missaío apostólica da Congregação.

50    A referência ao espírito do Fundador e às suas intenções específicas está significativamente assinalada pela descrição inicial da “experiência de fé do P. Dehon” que está na origem do que se chama espírito e índole da Congregação, em suas grandes orientações doutrinais, espirituais e apostólicas.

51    Por isso, o Capítulo Geral pediu que fossem transcritos, em anexo, nas novas Constituições, os dois primeiros capítulos das antigas constituições latinas de 1902-1956, substancialmente fiéis, segundo o Padre Dehon, às Constituições francesas de 1885. Estes dois primeiros capítulos eram, para o Padre Dehon, a Carta fundamental de nossa Congregação.

52    Fidelidade, mas fidelidade dinâmica. Depois do Vaticano II, não se quer mais ler os dois primeiros capítulos de 1956 com os mesmos olhos e sob a mesma luz de antes.

53    As novas Constituições são um reflexo desta nova leitura:

–   O n. 15 do novo texto constitucional, referindo-se “à nossa vida religiosa”, formula o princípio desta “fidelidade dinâmica”: Para cada um de nós, para as nossas comunidades, a nossa vida religiosa é história: desenvolve-se a partir da graça das origens, nutrindo-se daquilo que a Igreja, iluminada pelo Espírito, colhe constantemente no tesouro da sua fé”.

–   Também o n. 16, referindo-se à nossa vida espiritual de padres do Coração de Jesus, afirma que, para nós, viver segundo o carisma do Fun1 dador é entrar num movimento de vida que tem necessariamente uma “história”: uma abordagem comum do mistério de Cristo, sob a guia do Espírito, e uma especial atenção ao que, na inesgotável riqueza desse mistério, corresponde à experiência do P. Dehon e dos primeiros membros da Congregação.

54    Observe-se a nuança e a precisão do verbo “corresponder” (não reproduzir), para caracterizar a fidelidade dinâmica e histórica, no sentido forte do termo.

55    Enfim, note-se a grande “inclusão” que enquadra todo o texto das Constituições:

–   N. 1: “Esta (a Congregação) é chamada a fazer frutificar esse carisma, segundo as exigências da Igreja e do mundo”.

–   N. 144: “A nossa vida religiosa participa na evolução, nas provações e procuras do mundo e da Igreja. Também ela é constantemente interpelada: somos obrigados a repensar e a reformular a sua missão e as suas formas de presença e de testemunho. (…) Sabemos que a opção pela vida religiosa, para que se mantenha viva, exige o encontro frequente com o Senhor na oração a conversão permanente ao Evangelho e a disponibilidade de coração e de atitudes, para acolher o Hoje de Deus”.

56    A dupla menção à Igreja e ao Espírito, em todos estes números, assinala, com muita felicidade, o que deve dar garantia, não só eclesiástica ou eclesial, mas também carismática e de autenticidade, a esta fidelidade dinâmica.

2.3. A abordagem pedagógica

57    Finalmente, o que constitui também, à sua maneira, novidade nestas Constituições, é o estilo da apresentação ou, melhor, a abordagem pedagógica.

58    Todo texto tem estrutura e desenvolvimento lógico e, em certo sentido, linear. Nota-se, facilmente, isto, percorrendo o índice das matérias, os títulos e sub-títulos.

59    Há cinco partes (documentos), em que se encontram as tradicionais divisões:

–   Definição ou descrição de nossa vida religiosa SCJ, sob seus diversos aspectos: seu “espírito” (1-39), a profissão dos conselhos evangélicos e a vida comunitária (40-85).

–   Iniciação à nossa vida religiosa (ingresso e formação, na Congregação (86-106).

–   Governo e administração (107-143).

60    Mais interessante, porém, é a formulação dos títulos e sub-títulos. Eles formam, sobretudo nos dois primeiros textos (capítulos I e II, nn. 1- 85), uma espécie de frase continuada: Segundo o carisma do Fundador (1-8); Seguindo a Cristo…; Ao serviço do Reino (9-39); Continuando a comunidade dos discípulos (40-85).

61    Também nos sub-títulos encontra-se este tipo de formulação. Em lugar de uma palavra ou de um grupo de palavras, indicando o tema a ser desenvolvido por definições e demonstração, sobretudo dedutiva, (cf. De fine Congregationis, De spiritu amoris et immolationis), temos, agora, partes de frases, formando uma espécie de movimento, começo de movimento ou ação. Nao se trata, é claro, de puro artifício literário. É intencional a adoção de um método que chamamos de “abordagem pedagógica”.

62    Nesta “abordagem”, a natureza, o fim da Congregação e nossas obrigações não sao corolários de conceitos e de definições (da devoção ao Sagrado Coraçaò de Jesus, da oblação e da reparação), mas sao induções da própria experiência do Fundador e da nossa. É um método que se poderia chamar de “existencial” ou ainda “experimental”.

63    Desde 1967,vem-se adotando este modo de proceder. Nao se fala mais de “valores SCJ” que devem ser conservados e valorizados, mas de fidelidade à missão profética do Fundador, de esforço em reconhecer e reviver suas atitudes fundamentais, assumindo o próprio movimento de sua vida espiritual, mística e apostólica (cf. Doc VII, 2-8).

64    Nota-se um vínculo vital entre a experiência do Fundador, suas intenções originárias, a finalidade da Congregação e os meios de ação. Está evidente, nas fórmulas: “O P. Dehon quis (…), espera de seus religiosos (…)” (6-7); “Discípulos do P. Dehon, queremos (…)” (17); “A exemplo do Fundador (…) queremos contribuir (…)” (32). É claro que se quis ultrapassar as formulações teóricas, as definições, e elaborar um texto inspirante que pudesse servir de Regra de Vida e não fosse apenas simples coleção de normas práticas e jurídicas.

65    Daí, as muitíssimas formulações descritivas ou exortativas. A partir da própria vida – experiência do Padre Dehon, nossa própria experiência de fé, tradições da Congregaçãb e sua missão, discernida hoje, à luz das exigências da Igreja e do mundo – surgem normas de vida e se delineia um contexto institucional que realiza a integraçaò eclesial de nossa vida e de nossa comunidade.

66    Da experiência para a fé e da fé para a experiência, existe uma espécie de dialética de vida e de instituição que é, sem dúvida alguma, a característica mais interessante e mais típica da nova formulação. E é isto justamente que permite, no Código Fundamental, que sao as Constituições, prever e integrar no movimento de fidelidade profunda, a possibilidade e mesmo a necessidade de renovação contínua e de “conversão permanente… para acolher o Hoje de Deus” (144).

3. Estrutura literaria

67    Facilmente descobrir-se-á o essencial da estrutura e do desenvolvimento lógico e, em certo sentido, linear, de todo o texto, consultando o índice das matérias.

3.1. Os dois primeiros capítulos

68    Convém, porém, considerar, à parte, os dois primeiros capítulos (1-85). Constituem a la. parte que trata de “nossa vida religiosa, sua natureza, sua espiritualidade, suas formas de vida”.

69    Observemos quanto à ordem das partes e dos parágrafos deste conjunto, as três modificações de plano, introduzidas no texto de 1973, em 1979:

  1. a matéria sobre as “aspirações e apelos do mundo”:

–    em 1973, encontrava-se nos nn. 9 e 10

–    em 1979, encontra-se nos nn. 36 e 37,

  1. os parágrafos sobre a união com Cristo (vida scj)

–    em 1973, nos nn. 47 a 65

–    em 1979, nos nn. 16 a 25;

  1. inversão da ordem dos números referentes à vida comunitária e aos votos:

–    em 1973, nos nn. 17 a 26 / 27 a 41

–    em 1979, nos nn. 40 a 58 / 59 a 84.

70    Não se trata, evidentemente, de simples modificações formais e redacionais. Elas levantam sérias questões referentes ao conceito de vida religiosa, à sua apresentação canónica e teológica, à pedagogia da formação e à própria “missão” da Congregação, como se verá mais tarde.

71    A estrutura geral e o desenvolvimento lógico deste conjunto 1-85 são os seguintes:

1-8:      origem, natureza, finalidade da Congregação, considerada a partir da experiência e das intenções do Fundador;

9-39:    sentido, espírito e missão da vida religiosa SCJ, na Igreja e no mundo de hoje (identidade, espiritualidade, missão);

40-85: os principais elementos constitutivos de nossa vida religiosa:

–    profissão dos conselhos evangélicos (40-58)

–    vida comunitária, em suas diversas dimensões (59-85).

72    Entretanto, sob esta estrutura geral, visível, vislumbra-se outra, perceptível e paralela, nos dois primeiros capítulos cuja continuidade é marcada pela sequencia dos títulos: “Segundo o carisma do Fundador… Seguindo a Cristo…”. Somos chamados a seguir a Cristo, seguindo a experiência e o carisma do Fundador.

73    Segundo o carisma do Fundador, nós somos:

–   “religiosos”: 1. Congregação suscitada e enviada pelo Espírito (1)

–   “dehonianos”: 2. Seguindo a experiência de fé do P. Dehon (2 a 5)

–   para o apostolado: 3. Ao serviço da Igreja (6 a 7)

–   em comunidade: 4. Numa comunidade fraterna (8).

74    Seguindo a Cristo, hoje, somos:

–   “religiosos”: A.1. A nossa experiência de fé (9); A.2. Testemunhas do primado do Reino (10-15)

–   “dehonianos”: A.3. Unidos a Cristo no seu amor e oblaçab ao Pai (16-25)

–   para o apostolado: A.4. Participantes na missão da Igreja (26-34); A.5. Atentos aos apelos do mundo (35-39)

–   em comunidade: B.1. Chamados à profissão das Bem-aventuranças (40-58); B.2. Chamados a viver em comunidade (59-79).

75    Dojs parágrafos foram consagrados à Eucaristia e à Virgem Maria, em razão de sua importância em nossa vida:

–   B.3. Fiéis à fraçcTo do Pão (80-84)

–   B. 4. Com a Virgem Maria (85).

76    Na verdade, o parágrafo sobre a Eucaristia liga-se também à vida comunitária, como terceiro elemento da vida comunitária cristã”, mencionado pelo texto dos Atos (2,42) a que se faz referência. Por outro lado, o importante papel que exerce a Eucaristia na “missão” eclesial da Congregação (cf. n. 31), sugeria incluir o culto eucarístico na parte consagrada a esta missão.

77    As duas primeiras partes do conjunto 1-85, isto é, 1 a 8 e 9 a 39, dizem respeito mais especificamente ao carisma e à identidade da Congregação. A terceira parte, 40 a 85, trata da natureza e da prática da vida religiosa, em geral, mesmo se, em cada Congregação, ela seja informada e caracterizada pelo carisma e a identidade própria de cada Instituto.

78    O conjunto 1 a 39 corresponde praticamente aos dois primeiros capítulos das antigas Constituições (1-13):

–   I. De fine Congregationis

–   II. De spiritu amoris et immolationis.

79    O Diretorio Espiritual explicita e comenta “espiritualmente” estes dois primeiros capítulos, de caráter e formulação propriamente jurídicos.

80    Por isso, os nn. 1 a 39 das novas Constituições merecem atenção especial para se saber se, de fato, somos fiéis à recomendação do Padre Dehon em seu Testamento Espiritual: “Nunca percamos de vista o nos so fim e nossa missão na Igreja, como se encontram descritos nos dois primeiros capítulos de nossas Constituições”.

81    N.B. Estes dois primeiros capítulos das Constituições latinas tinham uma formulação mais jurídica que o I capítulo das Constituições francesas de 1885: “Finalidade e espírito da sociedade”. Pode-se ler a apresentação destes últimos textos, feita pelo P. Denis, em “Projet du P. Dehon” (Studia Dehoniana n. 4, p. 8 a 14 e 124 a 135).

3.2. Os números 1 a 39

3.2.1. O plano

82    Facilmente se descobrem a estrutura e o movimento deste conjunto:

  1. Segundo o carisma do Fundador (1-8): A experiência de fé do Padre Dehon, na origem da Congregação (2-5), a partir daí, ela tem sua índole própria, a serviço da Igreja (6-7), segundo um estatuto canónico determinado (8).
  2. Seguindo a Cristo (9-39): Experiência de fé e vida religiosa SCJ:

–    9 a 15: “Com todos os nossos irmãos cristãos” (9 e 13): Fé, para se chegar à santidade, nossa vocação religiosa, como dom particular e compromisso de seguir a Cristo pela profissão de tender à caridade perfeita.

–    16 a 39: “Discípulos do Padre Dehon”, na Congregação, 16 a 25: “o princípio e o centro de nossa vida”, modalidades de nossa vida de união com Cristo, no mistério de seu Coração: oblação vivida na disponibilidade e na solidariedade (cf. 18 e 21), nossa “inserção no movimento de amor redentor” (21), segundo as diversas modalidades duma vocação reparadora (22-25).

–    26 a 39: “O nosso carisma profético” (27): participantes na missão da Igreja (26-34); no mundo de hoje (35-39).

83    Observem-se, também, como algo particularmente significativo, as duas expressões conclusivas das duas últimas partes: n. 25: “… para a Glória e Alegria de Deus” n. 39: … no advento da nova humanidade em Jesus Cristo”.

84    Esta análise tem a vantagem da clareza, para uma primeira leitura. Entretanto, há o risco de trair um pouco o próprio texto, dando a impressão de distinguir, sobrepor ou juxtapor vocação batismal e vocação religiosa, de uma parte, e “espiritualidade” e “missão”, de outra parte. A reflexão sobre a nossa experiência de fé e nossa vida espiritual deverá estar atenta para corrigir esta primeira impressão.

3.2.2. Processo existencial

85    A referência à experiência, como foi observado, dá ritmo ao texto: parte-se da experiência de fé do Padre Dehon (2), para a nossa experiência de fé, com todos os nossos irmãos cristãos (9), “ao que… corresponde à experiência do Padre Dehon e dos primeiros membros da Congregação” (16).

86    Esta referência dá ao conjunto uma dinâmica interna, um movimento cujos “tempos” e “momentos” compõem – além da primeira estrutura mais lógica – uma outra, ao mesmo tempo, vital e literária.

87    As articulações estao nitidamente marcadas, em três números introdutórios: 9, 16 e 26, por particípios passados: “iniciados… chamados… consagrados…”. Eles descrevem o movimento de iniciação à Boa Nova de Jesus Cristo, “empenhando-nos, sem reserva, no advento da nova humanidade em Jesus Cristo” (39).

88    Nestes três números, nota-se a tríplice referência:

–   à Pessoa e ao Mistério do Cristo, experimentada na fé, no amor, no dom;

–   à Igreja, como lugar e meio de nossa iniciação, de nossa vocação e de nossa consagração;

–   ao Espírito, por meio do qual fazemos a confissão de nossa fé, realizamos nossa vida espiritual e nosso “ideal espiritual”, que caracteriza o serviço de “nosso carisma profético”.

89    Estas três grandes referências – como outras, também, p. ex. as do Reino, do mundo e da humanidade – podem ser observadas ao longo de todo o texto a respeito de diversos temas. Sem dúvida, para se compreender bem estas Constituições, é preciso meditar seriamente sobre sua cristologia e eclesiologia e dar ao Espírito seu justo lugar. As perspectivas puramente devocionais não são mais suficientes para isto.

3.2.2. Dinâmica dialogal

90    Nas três partes referentes à experiência do Padre Dehon, à de nossa fé batismal e à de nossa vida SCJ, a descrição segue um caminho paralelo, em dois tempos:

–   aos nn. 2-3… 10-12… 19-21, que descrevem o primeiro tempo da iniciação, do encontro, da descoberta de Jesus Cristo: apelo e vocação, correspondem:

–   os nn. 4-5… 13-14… 17/18/ 22/24 / 26/39, que descrevem a resposta espiritual e apostólica. Para o Padre Dehon e para nós, nesta resposta, se realizam nosso “carisma profético” e nossa missão eclesial.

91    Existe aí um movimento ou uma dinâmica dialogai que, segundo J. Mouroux, é, essencialmente, a da experiência espiritual cristã. Esta é “o ato ou conjunto de atos pelos quais o homem se põe em relação com Deus”, e, mais precisamente, “o ato da pessoa que se entrega a Deus que a chama”. A experiência religiosa é a “consciência desta resposta ao apelo, é a apreensão deste contato através do dom, é a descoberta da presença divina no “sim” que nos introduz nela” (J. Mouroux: A experiência cristã, p. 26). Esta definição é uma boa introdução para se entender a dinâmica de nosso texto e também sua estrutura.

92    Conviria refletir, aqui, sobre o que se entende, exatamente, por “Experiência de Fé”, “Experiência Espiritual Cristã”, para conhecer, ao menos, os elementos de uma teologia da experiência: sua natureza, sua possibilidade, a consciência que dela se tem, os grandes tipos de experiência espiritual na Escritura e na vida dos santos, as linhas de estrutura de semelhante experiência… Sao temas de grande importância para uma sã conceituação e autenticidade da vida de fé e de amor. Além do livro de J. Mouroux: Experiência cristã – Introdução a uma teologia (Col. Teologia 26), cf. o Dicionário de Espiritualidade (IV Col. 2004 – 2026), ou ainda Urs von Balthasar: A Glória e a Cruz, I. Aparição, pp. 185-360 (Col. Teologia 61).

3.2.4. Perspectiva escatológica

93    Nas principais articulações do texto aparece uma fórmula de caráter escatológico:

–   em o n. 10, a propósito da missão de Cristo: “… quando, por Jesus, Deus for tudo em todos”; as citações de Rom 8,22-23 e de 1 Cor 15, 28, emprestam a esta fórmula todo o seu sentido;

–   em relação à nossa vida de amor e de reparação: em n. 20: “… a sua plena manifestação, quando tudo for recapitulado em Cristo”; em n. 25: “… a humanidade reunida no corpo de Cristo”; a propósito de nossa missão apostólica; n. 29: “… a plenitude do Reino”; n. 39: “… no advento da nova humanidade em Jesus Cristo”.

94    Deste modo, todo o texto movimenta-se num grande ritmo e numa profunda respiração, com ampla e constante referência e perspectiva escatológica. O VIII e último capítulo da Lumen Gentium trata explicitamente do “caráter escatológico da Igreja peregrina e de sua união com a Igreja do céu”. É este o horizonte de toda a vida da Igreja e da vida religiosa, em particular. Nesta mesma linha, se insere o texto de nossas Constituições. É traço característico do esforço de atualização, pois a perspectiva escatológica, essencialmente eclesial, apostólica ou profética, nunca esteve presente nem era perceptível, até agora, nos textos oficiais da Congregação nem nos tratados sobre nossa espiritualidade. O Diretório Espiritual, com raras referências ao Espírito Santo e à Igreja, silencia também.

95    Somos convidados a viver nossa vida espiritual e apostólica, numa espécie de nova “paisagem” teológica, onde as palavras e as noções de união, oblação, abandono, reparação; onde nossa adoração e nossos ministérios, e a referência e a devoção ao Coração de Jesus, de modo especial, adquirem seu sentido.

4. Conclusão

96    Estas observações e reflexões não foram feitas nem propostas apenas como simples curiosidade literária, mas porque elas dizem respeito ao fundamento, às intenções e à inspiração do texto. Alguns grandes temas, ou, melhor, algumas grandes realidades teológicas – Cristo, Igreja, Espírito, escatologia – são referências gerais, “pólos” em torno dos quais giram e se organizam os temas particulares de nossa experiência e de nossa vida religiosa dehoniana, de acordo com a renovação adatada à “vida da Igreja, como, por exemplo, em matéria bíblica, litúrgica, dogmática, pastoral…”. É este o terceiro critério indicado pela Perfectae Caritatis, 2c.

97    Além disso, o texto apresenta uma constelação de citações e de referências, mais ou menos explícitas, que criam o “clima” (cf. nn. 10, 12,  16, 17, 19, 20, 22, 23, 25, 29, 38, 39). Parece ser o clima das cartas do Cativeiro de São Paulo, principalmente da dupla Colossenses-Efésios; clima dos célebres “hinos” de Colossenses, 1,12-20, e de Efésios 1,3-14. O n. 19 das Constituições remete explicitamente para este último texto.

98    O hino aos Efésios é uma boa meditação de abertura – como a meditação do “Princípio e Fundamento”, no início dos Exercícios de Santo Inácio – para se entrar no clima de atualização de nossas novas Constituições.

99    O próprio Padre Dehon gostaria, sem dúvida, desta maneira de “entrar” em seu espírito; uma maneira bem dentro de “seu temperamento e de sua graça” (cf. sua reflexão a respeito dos Exercícios de Santo Inácio, em NHV, IV, 125).

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