04 março 2022
04 mar. 2022

Ucrânia: Putin, Cyril e os vassalos

Ucrânia: Putin, Cyril e os vassalos
O modelo expansionista da Rússia de Putin e a afasia da Igreja Ortodoxa em Moscou caracterizam a agressão militar contra a Ucrânia.
por  Lorenzo Prezzi SCJ
Settimananews
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Após um longo e tenso discurso televisionado e o reconhecimento da independência das regiões de Donetsk e Lugansk (Donbass), o presidente russo ordenou aos militares que cruzassem a fronteira em 21 de fevereiro.

 O modelo de conflito pós-soviético

Já havia acontecido em 1992 com relação à Moldávia (Russificação da Transnístria). Repetiu-se com Putin em 2008 na guerra russo-georgiana (ocupando parte da Ossétia e Abecásia) e novamente em 2014 na ocupação militar da Crimeia (subtraída à Ucrânia).

Putin está criando novas formações ‘estatais’ em suas fronteiras que, por um lado, estão bloqueando esses territórios como uma forma de Estado-tampão e, por outro, estão envenenando os respectivos países em sua jornada democrática e redenção econômica. Sempre sujeitos à ameaça do grande vizinho. Mas acima de tudo, eles alimentam a reivindicação da “Grande Rússia”, do retorno aos territórios e aos condicionamentos da União Soviética.

Para o presidente russo, o fim da União é a grande tragédia do século, que deve ser remediada, mesmo rasgando os pactos bilaterais e multilaterais que foram assinados (como o acordo sobre mísseis de médio alcance – também anulados por Trump – e o tratado sobre as forças convencionais na Europa).

A expansão da OTAN (Aliança atlântica) está sendo invocada para fortalecer as defesas russas e para enfraquecer a força de atração da União Européia. Como disse o arcebispo greco-católico Borys Gudziak (responsável pela América do Norte), a razão da agressão russa não é a oportunidade de uma saída militar para o Mar Negro.

Não é a defesa dos russófonos “porque os russófonos constituem a maioria do exército que defende a Ucrânia e são eles os mortos por foguetes e franco-atiradores”. Eles são a maioria das 14.000 vítimas nos oito anos de guerra”. Também não se trata de defender a Igreja Ortodoxa de obediência russa, “porque muitas das pessoas mortas foram batizadas na Igreja Ortodoxa russa”. A verdadeira razão “é porque a Ucrânia é uma democracia nascente e, em muitos aspectos, uma democracia vivaz”.

Um país em trânsito do totalitarismo à liberdade é intolerável nas fronteiras russas porque o que acontece em Kiev poderia acontecer em Moscou. Entre os primeiros resultados da operação militar nota-se a recompactação da Aliança atlântica (a Suécia e a Finlândia estão solicitando a adesão), a convergência na União Européia e a renovada centralidade dos Estados Unidos.

Mas também a expectativa de onde o exército russo vai parar, do fortalecimento do nacionalismo de direita nos países vizinhos (Polônia, Lituânia, Estônia), de qual legitimidade dará à China para prosseguir com a ocupação de Taiwan.

 Oração e paz

O clima de guerra levou, sobretudo as Igrejas, a fortalecer o anúncio da paz. Papa Francisco convocou todos os católicos para uma oração pela Ucrânia em 26 de janeiro (e 2 de março), como havia feito pelo Líbano em 2020.

Três dias antes ele disse: “Estou acompanhando com preocupação as crescentes tensões que ameaçam infligir um novo golpe à paz na Ucrânia e colocam em questão a segurança do continente europeu, com repercussões muito mais amplas”. “Como é triste quando pessoas e povos que têm orgulho de ser cristãos vêem os outros como inimigos e pensam em fazer guerra”!

Na mesma direção vemos o núncio na Ucrânia, Dom Visvaldas Kulbokas, Card. Leonardo Sandri, prefeito da Congregação para as Igrejas Orientais, o Conselho das Conferências Episcopais Européias, o patriarca ortodoxo de Constantinopla, Bartolomeu, (“pedimos paz, estabilidade e justiça duradouras na região”), a presidente da Igreja Protestante Alemã, Annette Kurschus. Os bispos poloneses, fortalecidos por sua proximidade ao anti-ocidentalismo russo e às relações históricas com a Ucrânia, propõem, com certa ambição, um encontro de todas as confissões envolvidas no conflito.

Os apelos pela paz multiplicam-se a partir da Ucrânia. O metropolitano ortodoxo Epifânio (Igreja autocefálica) denuncia a ameaça russa e pede paz. O bispo latino de Kiev, Vitalii Kryvytskyi, diz que não há pânico, mas muitos estão pensando em se mudar para as regiões ocidentais do país. O arcebispo maior dos ucranianos (greco-católicos), Sviatoslasv Shevchuk, diz: “O povo diz que se o papa vier à Ucrânia, a guerra terminará”. O bispo greco-católico Tuchapets lidera a recitação diária do rosário pela paz em sua eparquia.

O embaixador ucraniano junto à Santa Sé, Andriy Yurash, lembra que o governo é a favor de conversações diretas entre a Ucrânia e a Rússia em território neutro, como o Vaticano. Em 16 de fevereiro, proclamado o dia da unidade nacional, o Conselho Pan-ucraniano de Religiões se reuniu na Catedral de Santa Sofia, em Kiev, para uma comum oração.

Por parte da liderança eclesial russa, normalmente muito loquaz, silêncio substancial. Um silêncio que vê aumentar a distância entre as duas Igrejas Ortodoxas ucranianas, a pró-russa (Dom Onufrio) e a autocefálica (Dom Epifânio). As últimas pesquisas demográficas dão a maioria da população ortodoxa a esta última Igreja. A fenda eclesial em 2019, com Bartholomeo concedendo autocefalia, alimentou suspeitas mútuas.

Da parte político- eclesiástica pró-russa chegou o alarme sobre um possível acordo entre a Ucrânia e a Santa Sé. Seria, dizem eles, mais uma ferida na relação recíproca entre as confissões. D. Borys Gudziak concluiu: “Que a Igreja Ortodoxa Russa caminhe de mãos dadas com o agressivo ataque militar a um país democrático e à sociedade é verdadeiramente assustador”.

 Russkiy-mir e o sonho imperial

Além do caso dos bispos ortodoxos de Donbass que estão diretamente envolvidos, como Monsenhor Hilarion de Mariupol, que pediu aos mosteiros que abrissem suas portas aos refugiados, houve poucas palavras de Moscou, que geralmente é intervencionista. Dom Hilarion, presidente do departamento de relações externas do patriarcado, tomou como certa a distância entre as duas repúblicas autônomas de Donbass e a Ucrânia e pediu a retomada do diálogo entre as partes, deslocando a questão para o conflito entre a Rússia e o Ocidente.

A plena adesão da Igreja Ortodoxa Russa à política de Putin tem sido ainda mais reforçada. Não levantou-se uma única voz na liderança eclesial para questionar as intervenções na Geórgia, Azerbaijão e Ucrânia (primeiro para a Crimeia, agora para o Donbass). Em alguns aspectos, a cúpula eclesiástica, e em particular o Patriarca Cyril, antecipou o projeto do governo, teorizando o Russkiy-mir (pensamento russo), ou seja, a extensão da responsabilidade de Moscou sobre as Igrejas das nações que antes faziam parte da União Soviética e sobre territórios mais ou menos próximos.

O caso georgiano (a sede de um antigo patriarcado) foi difícil de suportar, mas a pronta intervenção (a rápida substituição do bispo metropolitano) suavizou o perigo de uma cisão na Bielorrússia. A vitória ucraniana (autocefalia) está longe de ser digerida. As fronteiras geográficas foram repetidamente definidas por Dom Hilarion da seguinte forma: Rússia, Ucrânia, Belarus, Moldávia, as ex-Repúblicas Asiáticas, Letônia, Lituânia, Estônia (assim como Japão, China e Mongólia).

Mais recentemente, a abertura de um exarquato para a África. Em 2 de fevereiro, Dom Hilarion recebeu de Putin uma das mais importantes honrarias russas, a Ordem de Aleksandr Nevsky. Naquela ocasião ele disse: “Nosso departamento às vezes é chamado de Ministério das Relações Externas da Igreja. Isto não é correto porque não estamos preocupados apenas com as relações externas, mas também com as relações inter-religiosas em nossa pátria. E nos últimos anos nos sentimos cada vez mais como uma espécie de departamento de defesa, porque temos que defender as fronteiras sagradas de nossa Igreja”.

“A Igreja Russa foi formada ao longo de mais de dez séculos e nós a herdamos dentro dos limites em que foi criada. Nós não a criamos e não podemos destruí-la. Portanto, continuaremos a resistir aos desafios externos que enfrentamos hoje”.

 Putin fala como Cyril

Putin, no discurso mencionado ao início, após acusar o governo e a liderança ucraniana de ser um regime fantoche, corrupto, neofascista e economicamente falido, apresenta-se como um defensor da liberdade religiosa, apelando para a defesa da Igreja Ortodoxa ucraniana pró-russa, com os mesmos argumentos usados pelo Patriarcado: “As autoridades ucranianas transformaram cinicamente a tragédia da divisão da Igreja em um instrumento de política estatal. A atual liderança do país não responde às exigências dos cidadãos (pró-russos ortodoxos) de revogar as leis que violam os direitos dos crentes”.

Pelo contrário, há novos projetos de lei punindo a Igreja que se refere a Dom Onufrio. “Kiev continua a preparar uma repressão contra a Igreja Ortodoxa Ucraniana do Patriarcado de Moscou”.

Além do Russkiy-mir (pensamento russo), existe a longa tradição ortodoxa da “sinfonia” entre Igreja e Estado, Igreja e poder. Na longa história da Ortodoxia, não há elaboração do possível conflito entre o poder civil e eclesiástico. E embora tenha passado por longos períodos de perseguição (como no caso do regime soviético), ainda não construiu uma doutrina sobre o assunto, além de um texto russo sobre doutrina social na primeira década do século e um segundo, mais recente, resultado do Conselho de Creta.

 O futuro do ecumenismo

Se o cisma intra-ortodoxo alimentou o conflito russo-ucraniano, ambos oferecem sérias dificuldades para o caminho ecumênico das Igrejas, que hoje está em grande parte nas mãos da Igreja Católica.

É verdade que o Papa pode falar com todos os ortodoxos e que as outras confissões cristãs favorecem o esforço ecumênico, mas a cisão entre os helenistas e os eslavos ortodoxos redesenha as conversações (as teológicas são cada vez menos possíveis) e redefine compromissos como a segunda reunião, há muito esperada, com o Patriarca Cyril. O Papa não poderá ignorar o caso ucraniano.

Mas talvez seja precisamente o desastre humano já em curso (14.000 vítimas, um milhão e meio de refugiados) e a expansão da guerra que levará todos os crentes a essas relações de estima e proximidade, de ajuda e compreensão, de oração e perdão que os capacitará a ouvir o imperativo de Jesus para a unidade de sua Igreja.

 

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