Entrevista com o Padre Carlos Luis Suárez Codorniú SCJ, Superior Geral, sobre “Fratelli tutti”, a mais recente Encíclica do Papa Francisco
A Encíclica “Fratelli tutti”, do Papa Francisco, mostra paralelos surpreendentes com a espiritualidade dehoniana e a obra dos Dehonianos. Como o senhor explicaria a Encíclica em poucas palavras?
A Encíclica é um caminho de peregrinação através da humanidade. Para mim, a Encíclica é uma lectio divina sobre a parábola do Bom Samaritano, uma contemplação que faz refletir: para onde vamos? De que modo vamos? A quem nós encontramos? Quem devemos evitar? Nossa meta é sempre, a de alcançar um determinado objetivo ou destino. Mas o que acontece ao longo do caminho até lá? Ao ler esta maravilhosa parábola, é como se o Papa mesmo, estivesse sentado à beira deste caminho, aproveitando para sentir, como peregrino, este caminho.
Quais foram seus primeiros pensamentos, ao ler a Encíclica?
Era como se um Dehoniano a tivesse escrito! (risos) Na verdade, imediatamente escrevemos uma carta à Congregação, porque para nós foi uma alegre surpresa. O que lemos, nos parece muito familiar. Como Dehonianos, reconhecemos no texto, a nossa própria espiritualidade. Padre Dehon era também um viajante. Para ele, porém, não se tratava de turismo e de descobrir novos lugares. Viajar era sua forma de entender o mundo. Fez muitas anotações sobre suas viagens, e isso nos mostra que Padre Dehon procurou uma compreensão mais profunda: para onde vamos, o que nos traz alegria ao cuidar dos companheiros, pois não estamos sós. Como diz o Papa: somos companheiros de viagem.
E como o senhor, como Superior Geral, se sentiu: confirmado? Encorajado?
Fratelli tutti me encorajou muito. A Encíclica é extremamente útil para fortalecer nosso compromisso. Às vezes falamos do Dehon espiritual, do Dehon social, do Dehon histórico – mas na verdade olhamos para a espiritualidade de Dehon como um todo. Ela se expressa em uma determinada maneira de ver o mundo, e é disso que trata a Encíclica. Está enraizada em uma experiência de fé, e é a partir dessa experiência, que se pode viver a vida de maneira adequada. Isso ainda é possível hoje! Nosso engajamento se dá das formas mais diversas, nas diferentes partes do mundo, porém cada ação deve ser parte de uma experiência interior de fé e de Deus – porque é Deus mesmo, quem faz algo conosco. Às vezes ele se aproxima de nós, outras vezes permanece em silêncio. Quando descobrirmos o plano de Deus em nossa vida, temos que realizá-lo.
O senhor disse que a Encíclica descreve um caminho, uma peregrinação – porém com qual objetivo? Qual é a resposta do Papa?
Somos chamados a amar aquilo que somos. Amar a nossa própria vida. Apreciar nossos dons e talentos. Desfrutar o caminho, nosso ser peregrino, descobrindo novos rostos e companheiros de caminhada. Nossa existência tem um propósito e não estamos sozinhos. Como VOCÊ pode me ajudar a ser mais humano, um homem melhor, uma mulher melhor? Como VOCÊ pode me ajudar a crescer como ser humano? É uma maravilhosa peregrinação de solidariedade: caminhemos juntos. Este é o Sint Unum da nossa espiritualidade: que todos sejam um! É uma nova forma de ler nosso Sint Unum. Fratelli tutti é também uma continuação consistente dos ensinamentos de nosso Papa. Todos os seus escritos têm algo em comum: que um ajude o outro a crescer e se desenvolver.
O Papa Francisco escreve, a certa altura (FT 127): “É possível desejar um planeta que ofereça a todas as pessoas terra, casa e trabalho. Este é o verdadeiro caminho para a paz… “O que um Papa pode fazer hoje, em meio a um mundo predominantemente secular, globalizado e fragmentado?
O que caracteriza o ser Papa de Francisco é a proximidade: com o povo, com os mais pobres. Especialmente os mais pobres, são os que mais precisam de proximidade, e esta a encontram no Papa Francisco. É com alegria e gratidão, que leio essa parábola, na qual se pode sentir essa proximidade. Deus também nos fez sentir essa proximidade, quando a palavra veio ao nosso mundo e se fez carne. Também isso é importante para a nossa vida religiosa, para que possamos permanecer juntos e unidos. Outro aspecto que o Papa Francisco acentua é o da simpatia, da gentileza. A alegria, de poder mostrar-se gentil para com os outros e perguntar: O que posso fazer por você? É isso que tiramos das lições do Papa Francisco: proximidade e simpatia. Ele nos mostra isso por meio de muitos gestos de amizade. Ele se sente e se mostra próximo de nós, pertencemos à sua família.
Proximidade e simpatia também são marcas próprias dos Dehonianos. Qual é a coisa mais importante que o senhor, como Dehoniano, aprendeu com “Fratelli Tutti”? O que foi novo?
Novo para mim foi, ter a coragem de dar um passo para trás e poder enxergar nossa espiritualidade sob uma nova luz. O Papa se refere ao Evangelho, e é claro que conhecemos o Evangelho muito bem. Porém agora o Papa lança uma nova luz sobre o Evangelho, nos oferecendo uma nova perspectiva, e eu penso: Meu Deus, já conhecemos o Papa há tanto tempo, porém dessa vez, eu o vejo ainda mais próximo de nós. O Papa convida-nos a aproximar-nos ainda mais dele, dizendo-nos: Mergulhe no Evangelho. Isso é o que o Padre Dehon ensinou: Mergulhe no evangelho. Seja você mesmo parte desta parábola. Esteja entre aqueles que procuram Jesus.
O Papa Francisco diz: “Devemos participar ativamente na reconstrução e no apoio à sociedade ferida” (FT 77). Tal como se fosse diretamente tirado do mandato missionário, confiado aos Dehonianos …
… com toda certeza! Isso é reparação. Vemos sociedades quebradas. Vemos famílias desfeitas. Vemos nações destruídas. Vemos tantas pessoas feridas e machucadas. O mundo inteiro está ferido. Há tantas coisas que precisam ser consertadas. A maneira de expressar nosso amor a Deus, é mostrar nosso amor às pessoas quebradas, dentro do contexto que vivemos, em nosso tempo. A espiritualidade reparadora está absolutamente presente neste texto. O Bom Samaritano mostrou exatamente isso. Ele fez sua parte no processo de cura. Nós, Dehonianos, não somos os super-homens da humanidade, mas somos uma pequena parte de muitos heróis deste mundo. Não podemos assumir todos os fardos do mundo, seria presunçoso e frustrante, mas podemos fazer algo, a parte a nós confiada. Isso é maravilhoso! Perguntamo-nos seriamente: o que posso fazer? Onde se encontra a pessoa ferida, a quem posso extender a mão? Para qual homem, qual mulher ou qual criança posso ser parte da cura?
Quando foi a última vez, que o senhor pôde sentir, que pode fazer algo?
Talvez duas horas atrás (risos). Recebi um telefonema de um confrade. Ele estava muito chateado por causa de um mal-entendido com outro confrade. Eu simplesmente ouvi-o, dei-lhe o meu tempo e disse-lhe: calma, você não deve levar isso tão a sério e enxergar a questão sob um ângulo apenas. Sim, acho que foi a última vez … Acredito que todos os dias, todos nós temos oportunidades, de sermos parte de uma solução.
Como você resumiria brevemente as semelhanças entre espiritualidade dehoniana e “Fratelli tutti”?
Alguém nos ama, antes de nós o amarmos – sem pedir nada em troca. Por que justamente esse homem, da parábola do Bom Samaritano, parou naquele dia? E por que não os outros? Ele nada sabia sobre a pessoa ferida, por exemplo, se era rico e mais tarde pagaria pela ajuda prestada. Ele simplesmente o fez, pela alegria de poder fazer algo de bom para outra pessoa. Eu acho isso muito dehoniano. Na ótica do nosso Fundador, também nos encontros concretos com outras pessoas, com outras religiões, aprendemos: Não deixe nunca de fazer o melhor para os outros. Sem esperar nada em troca, isso é particularmente importante em nossos dias, em que sempre ouvimos as pessoas dizerem: O que eu ganho com isso? Perdemos a alegria de nos sacrificarmos por uma boa causa.
Há uma conexão especial entre o Papa Francisco, seus escritos, seus ensinamentos e o legado deixado por Padre Dehon. Em que consiste essa relação?
Ambos estão com os pés firmes no chão. Ambos conhecem a realidade e sabem: existem muitas dores e sofrimentos em nosso mundo. Mas, ao mesmo tempo, são homens de esperança. Eles estão convencidos, que não será a tristeza nem a violência e nem o egoísmo que os farão desistir. Eles sabem que a história está nas mãos de Deus e o próprio Deus será o vencedor da história. Porém se há um vencedor, significa também que haverá um perdedor. Nossa forma de vencer é perder: meus próprios projetos, meu conforto pessoal. “Como você poderá se tornar um perdedor?” – Algo bastante difícil numa sociedade, em que sempre prevalece a lei do mais forte. Leia este livro, faça tal curso e você será um vencedor! Não, acho que o evangelho nos ensina: seja um perdedor! Perca o que há de pior em você, e só então você será realmente feliz, só então você se tornará um verdadeiro ser humano!
Isso soa muito estranho, especialmente em nossas sociedades ocidentais: ganhe, perdendo…
… com certeza! Tive uma reunião com os professores de uma de nossas escolas na Espanha. Pedi a eles que colocassem um grande cartaz na frente da escola, com a frase: Venha até nós e seja um perdedor! Ficaram chocados…
… posso entender!
Então tentei explicar, que essa era a lógica do Evangelho. O Bom Samaritano foi, sem dúvida, um vencedor. Ele perdeu dinheiro, perdeu tempo, talvez não compareceu a um encontro marcado, vindo assim a perder sua namorada.
?: E o que ele ganhou?
A alegria de compadecer-se. Trata-se aqui da compaixão. Todos nós temos inúmeros sentimentos bons e positivos. Mas o que são bons sentimentos? Eles não facilitam o caminho para você. A compaixão faz toda a diferença. O Bom Samaritano percebeu: não sou apenas um viajante, sou um peregrino. Isso é uma diferença. Ele experimenta Deus, não controlando cada passo, mas deixando que as coisas aconteçam. Um viajante planeja exatamente para onde vai, quando deseja fazer uma pausa e quando estará em determinado lugar. O peregrino, por outro lado, não sabe onde irá pernoitar no dia seguinte.
O Papa Francisco escreveu “Fratelli tutti” antes e durante a corona-pandemia. Até que ponto a missão e o trabalho dos Dehonianos é afetado pela pandemia? O senhor ainda consegue ser um Bom Samaritano, frente à pandemia?
Boa pergunta! Nossa regra de vida exige que um Superior Geral visite todas as Entidades. Para fazer isso, devo viajar constantemente pelo mundo, para visitar cerca de 50 países diferentes. Há quase um ano, não me é possível fazê-lo. Mas encontramos novas possibilidades no Governo Geral, através das mídias digitais. Agora temos mais tempo para orar, pensar melhor, refletir, discutir. Para mim, o tempo aqui na comunidade romana, com cerca de 40 confrades, é uma bênção! Quando comecei meu serviço à Congregação como Superior Geral, eu apenas dizia: “Olá!”, “Olá!”, “Adeus!”, “Adeus!” A maior parte do tempo eu não estava presente na comunidade. Porém agora, estando aqui, tenho a oportunidade de conhecer melhor os meus confrades mais jovens. Passo a conhecer a Congregação de uma forma nova. É claro, porém, que desejo voltar a visitar as Entidades e poder abraçar meus confrades pessoalmente, podendo ver a realidade de cada um com meus próprios olhos. Eu também sofro com a situação atual.
Isso significa que o senhor será o primeiro Superior Geral, que não terá visitado todas as Entidades, durante o seu Governo?
Bem, também o Padre Dehon teve essa experiência durante três anos, durante a Primeira Guerra Mundial. Ele viajava apenas entre Bruxelas e São Quintino. Teve que deixar de viajar numa época, em que a Congregação, em muitos lugares, estava apenas começando a se expandir. Significa que agora, me sinto mais próximo do Padre Dehon.
Lembro-me de nossa primeira conversa, logo após a sua eleição, e perguntei sobre seus desafios mais importantes. O senhor respondeu: redescobrir o Evangelho, redescobrir o legado/herança deixada pelo nosso Fundador e redescobrir o próprio Fundador. Certamente o senhor não imaginava, que a redescoberta do Fundador aconteceria em meio à esse tipo de isolamento.
De jeito nenhum! Mas há um lado muito positivo! Isso me ajuda muito. Claro que hoje temos as possibilidades da tecnologia. E os documentos do Papa Francisco – Fratelli tutti, Evangelii Gaudium, Laudato Si – ajudam-nos no caminho do Evangelho. Sinto-me abençoado com esses ensinamentos. Eles nos ajudam a atualizar nossa experiência do Evangelho.
Imediatamente após a publicação da Encíclica, o senhor escreveu uma carta à Congregação. Publicaram-se diversos artigos sobre o tema no site da Congregação dehoniani.org. Quais são seus planos futuros, sobre o modo, como os Dehonianos deverão trabalhar e viver com e a partir desta Encíclica?
Convidamos todas as Entidades, a lerem a Encíclica, a partir de suas respectivas realidades. Pedimos, por exemplo, também às nossas escolas, que façam algo com Fratelli tutti e Laudato Si, pois acreditamos que ambas se complementam. Temos muitos recursos, só precisamos utilizá-los de maneira adequada. Temos muito material e muitas oportunidades. As Entidades levam isso muito a sério, e uma série de iniciativas concretas já surgiram.
Dein Reich Komme 60 (2021) 10-13.
Dein Reich Komme é a revista dos Dehonianos da província alemã.